domingo, 30 de outubro de 2011

Lapso

- Vamos fazer um churrasco! - à hora dessa exclamação repentina, o pobre homem apoiou as mãos sobre a mesa e os olhos sobre nada. Talvez por isso não tenha percebido o espanto da família àquela proposta. Sua irmã tinha falecido repentinamente naquela madrugada e essa foi a primeira hora da manhã em que todos estavam reunidos, informados do ocorrido, mal-dormidos e transtornados. O marido era um homem de modos secos e excêntricos aos quais toda gente da casa estava acostumada, e desde que a esposa fôra para o hospital se pôs a dormir trancado a chave no quarto. Quando souberam da morte, bateram na porta com bastante insistência e quando enfim o homem respondeu, disse que não havia necessidade de abrir e que conseguia ouvir qualquer coisa muito bem do jeito que estava. Dito o ocorrido, não houve resposta e os familiares se retiraram para o andar de baixo. Durante todo aquele dia o homem permaneceu no quarto apartado de todos, inclusive dos filhos.

O tio lembrou ter visto uma vez, num desses programas de reportagem documental, que os orientais celebram a morte de um ente querido sem tristeza e com festividade. Embora o estado de sua irmã fosse bastante grave e a tragédia fosse iminente, sua morte constituía um evento tão absurdo de consequências tão improváveis que jamais fôra considerada, nem por ele nem por qualquer outra pessoa naquela casa. Entre a perplexidade e o desespero, surgiu aquela idéia amalucada. Ainda que todos tivessem estranhado, estavam prostrados e desnorteados o suficiente para não prestar resistência aquela proposta. Exceto o filho mais velho.

Todos concordaram em contar aos dois filhos depois que estes acordassem. O mais velho, mais afeito a rotina que propriamente disciplinado, acordou na hora de sempre e se dirigiu para a mesma cadeira na qual sentava todos os dias por cerca de uns vinte minutos, até ingressar de fato no dia que estava por vir. Esses vinte minutos tinham se tornado os exatos momentos do dia em que a ausência de sua mãe mais pesava e doía. Estes vinte minutos sentado, na verdade, compreendiam ao tempo que a mãe se levantava e preparava o café da manhã para todos, que estavam dormindo. Observava atento a movimentação e adorava ver o desdobrar das atividades concorrentes encerrando no tempo previsto e se encadeando uma na outra como um sistema vivo e pulsante: o lavar da louça do jantar entre a água ser posta no fogo e começar a ferver, aquele pôr de mesa entre o preparo das torradas. Embora alheio aquelas tarefas e ficando ambos sem trocar palavra até que mais alguém acordasse, estavam mais próximos durante esse sacramento matinal do que em qualquer outra hora do dia. A mãe, mesmo tendo quebrado inúmeras xícaras diante da passividade quase mórbida do filho, desfrutava cada instante daquele acordo íntimo. Quantas vezes ela, não fosse por ele, teria ficado mais um pouco na cama ou deixado o café da manhã ao encargo de quem quisesse tomar. E quantas vezes ele, tendo acordado mais cedo por ansiedade ou pesadelo, permanecia deitado até que ouvisse as sandálias dela se arrastando no piso do corredor.

Agora ele tinha se acostumado ao silêncio daquelas sandálias, e já levantava sem aguardar seu sinal. Acordou e dirigiu-se à cadeira habitual, estranhou estarem todos na cozinha tão cedo, e sem comer. Estranhou ainda mais todos olhos acompanharem seu percurso. A tia ensaiou dizer algo, mas a palavra morreu num suspiro. A respiração dele suspendeu por um instante, seus olhos encheram-se d’água e qualquer som além de seu coração acelerado tornou-se um rumor distante. Era uma nítida sensação de pesadelo. Estava absorto nessa vertigem quando o irmão acordou. A tia encarregou-se de contar ao mais novo, e tentou consolá-lo o mais que pôde. Se hoje perguntássemos a alguém a sequência dos fatos ou a duração daquele ínterim, ninguém seria capaz de responder, mas a situação era essa: o pai estava trancado no quarto de cima, a tia estava consolando o mais novo que chorava bastante, o mais velho estava sentado na sua cadeira e o restante estava calado e escorado em algum móvel. Do meio disto, veio a surpresa daquela proposta.
- Enlouqueceu? - retrucou a esposa, franzindo o cenho.
- Ué, como se fosse melhor todo mundo ficar nesse estado. Tenho certeza que ela ia achar melhor um churrasco que um chororô.
Começou a distribuir as tarefas entre as pessoas, que acatavam sem resistência ante seu tom enfático.
- E aí? Vai me ajudar a acender o fogo? - disse isso, tentando botar a mão no ombro do mais velho, que hostilizou o gesto duas vezes.
- Só me deixa quieto!

Não olhava para o tio, que lhe encarava esperando a oportunidade de dizer algo. Não obtendo retorno suspirou, retirou-se e foi preparar a churrasqueira. Um primo ficou encarregado de ir comprar o que faltava, enquanto uma das tias encarregou-se de preparar o arroz e a outra a pôr as batatas pra cozinhar.

O mais velho pensou consigo que era cedo demais pr’aquilo tudo: o primo não acharia nenhum lugar na redondeza que estivesse aberto, e embora ninguém tivesse se dado por conta, o desjejum de todo mundo seria um churrasco. Talvez todos se rendessem a lógica infalível desses argumentos e talvez até raciocinassem sobre a grande idiotice com que estavam colaborando, mas decidiu ficar calado.

Ficou ali, observando a dinâmica das duas tias na cozinha e comparando-a com a da mãe. Era uma movimentação nervosa e descontrolada, permeada por tarefas abandonadas repentinamente. Estavam atarantadas, volta e meia se esbarravam ou praguejavam algo baixinho. Nenhuma delas queria ele ali, antes se trancasse no quarto como o inútil do pai, não deu nem um abraço no irmão, o que quer ali olhando como se fosse melhor do que elas, nem se oferece pra nada, como se doesse mais nele. Falavam gritando sem dar por conta, lembravam de algo e riam nervosas, paravam constrangidas e engoliam o choro. Emergia daquela confusão uma sinfonia irritante de vidro e metal se batendo, jogados violentamente contra a pia ou na mesa, escapando das mãos. A corda esticava a cada acorde imprevisto, e essa nova tensão produzia uma nova gama de sons irritantes, e assim por diante. Não foi surpresa quando uma das tias prostrou-se entre cacos de vidro aos prantos no chão da cozinha ao ter derrubado um pote de azeitonas.

Um tempo depois chegou o primo com as compras, e o tio prontamente começou os preparativos para assar a carne que tinha chegado. O mais velho retirou-se para seu quarto e lá ficou até que o chamassem para almoçar. Ficou no quarto um bom tempo tentando lembrar a primeira memória que tinha da mãe, ordenando cada quadro desse retrospecto na sequência apropriada. As recordações eram difusas e a tarefa era demasiado árdua, acabou por adormecer. Sonhou com um barulho de porta batendo, que pegava um ônibus e partia. Sonhou que pedia desculpa e dizia que amava, que a mãe cozinhava.

Acordou com o primo chamando, dizendo que tudo estava pronto e que seria bom ele comer alguma coisa. Sentou a mesa e estavam todos almoçando. O silêncio era insuportável e todos comiam sem vontade fitando o prato. O tio olhou para cada um e só então percebeu que a coisa não ia bem, ele mesmo estava irritado. Começou a contar histórias da sua irmã, histórias engraçadas de quando eram crianças e que todo mundo já tinha escutado em outra ocasião. Forçava um riso vez que outra. Sua voz predominava na mesa e não sabia mais o que fazer, nem dizer. Quando o mais novo começou a chorar e correu para o quarto de cima, sua esposa lhe repreendeu com os olhos e saiu da mesa em socorro ao sobrinho. O tio olhou novamente pra cada um, hesitou um pouco e tentou se desculpar. O mais velho não escutou as desculpas, estava pensando no que seria da sua vida agora que sua mãe não existia. Pensava dolorosamente no futuro do irmão, na inaptidão do seu pai. O que faria com isso tudo? Queria ter partilhado das histórias do tio, queria ter resguardado o irmão de todo aquele sofrimento e queria ter tirado seu pai do quarto.

Sabia tudo que devia fazer e a incapacidade de fazê-lo lhe deprimia feito o diabo. Estava paralisado e nada podia contra aquilo, custava-lhe admitir que era demais pra ele. Sua mãe era o que tornava aquilo tudo uma família e isso tudo tinha ido junto com ela. Pra onde? Jamais lhe beijaria a testa de novo, pediria desculpas, nem poderia dizer que a ama. Para sempre. As pessoas ao redor mastigavam grandes nacos de carne, como animais. Fazendo muito barulho. Não pertencia aquilo, eram todos grotescos e desconhecidos. Esteve tantos anos em meio a desconhecidos, mas só agora tudo aquilo lhe trazia uma grande repulsa. O que a mãe dele fazia com toda aquela gente por tantos anos? Por que abnegou-se de tantas coisas pelo esforço de fazer daquele bando de gente uma família?

Pensava nisso tudo quando sem pensar pegou seu prato e lançou violentamente contra a parede. A sorte daquela casa estava traçada. Virou a mesa, as tias gritavam, ora perguntando se ele tinha enlouquecido, ora xingando e pedindo pra ele parar. O tio tentou contê-lo, mas ao levar dois dos três socos desferidos contra ele bem no meio cara, engalfinhou-se com o sobrinho numa luta que, vista de fora, era bem ridícula. O primo separou ambos com dificuldade, sangravam bastante enquanto o tio berrava contra o sobrinho mais velho, tentava recomeçar o embate mas era impedido pelo filho que lhe empurrava e pedia calma. O mais novo era mantido pela tia no quarto de cima mas ouvia toda gritaria, por mais que sua tia repetisse que tudo ia ficar bem.

- Essa casa não é mais tua!

O tio berrou isso após um longo silêncio. De quem era a casa? De quem era aquilo? O que, exatamente, era aquilo?

Antes que seu pai seguisse seu mesmo destino subiu, recolheu o que pôde de roupa numa mochila velha e saiu sem se despedir de ninguém pela porta da frente. A casa e aquela família, assim como sua mãe, existem até hoje apenas na sua memória.